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terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Fahrenheit 451: a temperatura em que o papel queima

BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. São Paulo: Ed. Globo, 2003.

Ray Bradbury, escritor americano (1920), alcançou sucesso basicamente em 1950, com suas Crônicas Marcianas. Embora não seja um bestseller, Bradbury tem um alto conceito nos meios literário, educacional e de entretenimento dos Estados Unidos como "consultor de idéias", dramaturgo, poeta e ensaísta. Atua também como roteirista de cinema desde 1953, tendo recebido um Oscar pelo roteiro de Moby Dick, filme dirigido por John Huston (? - 1987).

Fahrenheit 451 (1953), que se chamaria The Fire Man, nos fala de um mundo onde os livros foram abolidos, sendo proibido até possuí-los. As pessoas se contentam em passar os dias vendo programas de televisão - cujos aparelhos ocupam as quatro paredes dos cômodos da sala de estar - e seu único interesse é comentar os programas, novelas ou comerciais, cantando seus jingles e seus bordões em todos os lugares, metrô, praças e onde quer que vão [não sei, mas ultimamente tenho ouvido exatamente isso sobre o BBB]. Esses jingles são daquele tipo de música que se fixam em nossas cabeças e não conseguimos desligar – alguma semelhança com nossa cultura atual?


Em 1966, François Truffaut colocou nas telas a história de Bradbury, que segundo o próprio, foi bastante modificada para sanar alguns mistérios que o livro deixou pendentes. Porém, na re-edição, ele mesmo se explica no posfácio, decidiu deixar o texto original, mesmo que isso inquietasse alguns de seus leitores mais antigos, inconformados com as lacunas na história ou mesmo com o destino final de alguns personagens.

O livro passa a sensação de que o autor, já em 1953, visualizava os desdobramentos de uma cultura massificada, na qual idéias originais, a observação crítica do mundo, dos costumes e o questionamento do status quo, têm cada vez menos espaço.

O mais lamentável é que os habitantes desse mundo se autoalienaram. Não houve sequer a necessidade das autoridades convencê-los ou mesmo forçá-los a deixar os livros de lado. Porém, uma vez que eles abandonaram o hábito da leitura de livre e espontânea vontade, começou um movimento repressivo e de caça aos resistentes, teimosos em achar a leitura algo importante para a vida. A repressão era executada pelos bombeiros através de incêndios de pilhas de livros. A razão dos moradores da cidade (ela não tem nome) deixarem de ler foi a verificação de que ficavam mais felizes sem as idéias que os livros traziam. Os livros faziam pensar, pensar fazia sofrer, enxergar o mundo de muitas formas e pontos de vista. O indivíduo se dava conta, então, da dor do outro no mundo. E afinal por que alguém gostaria de ser infeliz?

O paradoxo é que os bombeiros já não apagavam mais incêndios, pois todas as edificações eram cobertas com uma camada de material não inflamável. Sua tarefa agora era queimar o maior número de livros, todo e qualquer remanescente de bibliotecas públicas ou particulares.

Bradbury (2003, p.79) nos mostra o vazio de um mundo imagético, midiático e hedonista. Através do diálogo do personagem Beatty, chefe dos bombeiros, com Montag, o bombeiro que começa a questionar o mundo em que vive, o autor explica que o mundo passou a ser todo resumido, pois as pessoas não têm mais paciência de ler:
“Clássicos reduzidos para se adaptarem a programas de rádio de quinze minutos, depois reduzidos novamente para uma coluna de livro de dois minutos de leitura, e, por fim, encerrando-se num dicionário, num verbete de dez a doze linhas [...] o Hamlet não passava de um resumo de uma página num livro que proclamava: Agora você finalmente pode ler todos os clássicos; faça como seus vizinhos.”
E vai mais longe em algumas reflexões, que a mim parecem muito com o tipo de educação média que temos hoje – pelo menos no Brasil:

“A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as histórias e as línguas são abolidas, gramática e ortografia pouco a pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é imediata, o emprego é o que conta, o prazer está por toda parte depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas?” (Bradbury, 2003, p.80).
Sobre a questão de maiorias x minorias, demonstra a complexidade da questão. Existe um ditado que diz “que toda maioria é burra”, mas já refletimos sobre as minorias? Falo aqui de minorias que querem impor seus pontos de vista, modos de vida e idéias à maioria, sem deixar que outras minorias dentro da maioria tenham sua própria voz. Diz Bradbury (2003, p.82):

“Agora tomemos as minorias de nossa civilização, certo? Quanto maior a população, mais minorias. Não pise no pé dos amigos dos cães, dos amigos dos gatos, dos médicos, advogados, comerciantes, patrões, mórmons, batistas, unitaristas, chineses de segunda geração, suecos, italianos, alemães, texanos, gente do Brooklyn, irlandeses, imigrantes do Oregon ou do México. [Eu acrescentaria, para atualizar, os muçulmanos]. Os personagens desse livro, dessa peça, desse seriado de tevê não pretendem representar pintores, cartógrafos, engenheiros reais. [...] quanto maior seu mercado, menos você controla a controvérsia! Todas as menores das menores minorias querem ver seus próprios umbigos, bem limpos. Autores cheios de maus pensamentos, tranquem suas máquinas de escrever! [para atualizar, seus PCs e notebooks].
E assim, não se pode escrever (ou falar) sobre quase mais nada, pois se tem sobre a cabeça uma espada de um processo de calúnia e difamação, ou ser taxado de preconceituoso – lembrando que preconceitos sempre têm dois lados. Essa é a democracia atual no Ocidente e que no livro já se entrevê. Um amigo disse um dia, que qualquer pessoa pode dizer o que quiser, o problema é quando o atingido se ressente e age de uma forma rancorosa. Eis o problema. Se eu disser que você é gordo, feio, negro, homossexual, prostituta, de esquerda, de direita, etc. posso ser presa ou processada. Mas como evitar? Somos humanos, nada mais que humanos. Existe solução para as diferenças individuais? Ou nos tornaremos todos iguais, como no livro Henfil na China (1984, desculpem, mas sou dessa geração), vestindo as mesmas roupas, recitando os mesmos mestres (Mao, Lênin, Stalin) e pensando, fazendo, lendo e assistindo só o quê e indo só aonde é permitido pelo partido, ou pela ditadura do politicamente correto e do eufemismo? Será que algum tipo de transgressão na mesmice não é nem um pouco salutar?

Mas sempre existem sim alguns transgressores. Não existe unanimidade na espécie humana, a divergência é algo esperado porque renova e inova. É o motor da mudança social. Na página 100, Montag conversa com Faber, um professor de inglês aposentado, que há quarenta anos fora descartado, “quando a última faculdade de ciências humanas foi fechada por falta de alunos e patrocínio” [não sei porque, mas tenho uma sensação de déjà vu]. Como ele, outros intelectuais foram dispensados, pois eram o veículo para a infelicidade humana, afinal questionavam as coisas e não deixavam que as pessoas esquecessem que nem elas, nem o mundo eram perfeitos. E isso é muito perigoso.

Mas em um mundo em que ler também é muito perigoso, talvez a atitude mais prudente seja a dada por Beatty, o Chefe dos Bombeiros, no fim fictício que Bradbury colocou no posfácio do livro. Depois de tantos anos incendiando livros, ele revela a Montag uma grande biblioteca escondida em sua casa. Montag pergunta: - Mas o senhor é o Queimador-Chefe! Não pode ter livros em sua casa! Beatty responde: - O crime não é ter livros, Montag, o crime é lê-los! Sim, é isso mesmo. Eu tenho livros, mas não os leio.

Bem, mesmo que nós adquiramos livros com maior velocidade do os lemos, só nos resta esperar ter tempo de vida suficiente para ler a maior quantidade possível e não transformar nossa sociedade no mundo de Montag.

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