BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS [texto publicado em 28/02/2005]
A perplexidade causada pela crise política brasileira reside no fato de Lula ora parecer apenas a ponta do iceberg, ora parecer o iceberg todo. Por agora é difícil identificar o perfil da crise. Uma coisa é certa: o Brasil entra penosamente em um novo período político, um período que podemos designar de pós-lulismo. É ainda cedo para definir o legado histórico do lulismo enquanto forma de governo. Para já, ele parece ter constituído o mais inquietante disfarce histórico do neoliberalismo nos últimos 20 anos, ou seja, a conversão mais elaborada, ainda que talvez involuntária, do mais lídimo representante dos oprimidos (pela sua trajetória e pelo seu peso eleitoral) em um gestor atípico da globalização neoliberal.
O pós-lulismo pode ocorrer por várias vias: impeachment, desistência de Lula a um novo mandato, candidatura seguida de derrota. A via certamente menos onerosa, mas também a mais improvável, dadas as circunstâncias, seria um pós-lulismo conduzido pelo próprio Lula: demissão imediata da equipe econômica, redução do superávit e aumento do salário mínimo e reforma do sistema político, de modo a torná-lo mais transparente e democrático.
O problema central da esquerda brasileira é saber se o pós-lulismo será também o pós-petismo. A descaracterização do petismo por parte do governo Lula foi tão maciça e tão caricatural -montar um esquema de corrupção para fazer aprovar políticas de direita e garantir, daqui a uns anos, a presidência a um político sem qualquer credencial para o cargo, José Dirceu- que, paradoxalmente, o PT tem todas as condições de sair reforçado no pós-lulismo. Basta, para tal, que tenha a coragem de assumir em pleno o ideário político e ético que lhe permitiu captar a esperança de tantos milhões de brasileiros.
Todos as crises políticas são processos de emergência e, por isso, vistas apenas pelo seu lado negativo. O primeiro elemento positivo é que as próximas eleições brasileiras serão talvez as mais livres e transparentes da história recente da democracia representativa, não só no Brasil como no mundo. O PT tem tudo a ganhar com esse fato, sobretudo porque a sua base social e política parece estar disponível para uma nova tentativa, desde que assente em um pacto político e não mais em um cheque em branco. O segundo elemento positivo é a emergência da estatura política de Tarso Genro. Acompanho de perto a trajetória e a reflexão políticas de Tarso Genro e não tenho dúvidas ao considerá-lo um dos políticos de esquerda mais bem preparados do mundo: alia como poucos a mais sofisticada elaboração teórica à mais consistente prática política. O seu nome é hoje uma referência incontornável no pensamento e na prática da nova esquerda, tanto na América Latina como na Europa.
A descaracterização do petismo foi tão caricatural que o PT tem todas as condições de sair reforçado no pós-lulismo
O seu nome internacional emergiu com a experiência do orçamento participativo em Porto Alegre, considerado pela ONU como uma das grandes inovações urbanas do final do século 20. Ninguém melhor que ele para conduzir o processo de articulação entre democracia participativa e democracia representativa num PT refundado. Com a entrada no governo Lula, ganhou a dimensão nacional que há muito lhe era devida. Tarso Genro e Celso Amorim foram os dois melhores ministros de Lula, aqueles que com mais êxito brandiram o petismo contra o lulismo.
Considero a reforma universitária levada a cabo por Tarso Genro uma das mais progressistas do mundo: depois de anos de abandono exigido pelo neoliberalismo, retoma-se a prioridade da universidade pública na construção de um projeto de país; vincula-se a escola pública de nível médio ao ensino público superior e impõem-se marcos regulatórios claros para as instituições privadas de ensino; instituem-se novos padrões de financiamento para a universidade e constrói-se concretamente a autonomia; assume-se plenamente a necessidade de bolsas para alunos de baixa renda, começando com as bolsas do Prouni, seguidas do sistema de quotas para afrodescendentes e índios; criam-se novas exigências de qualidade, ao estabelecer mínimos de doutores e mestres entre os docentes; põe-se um travão à globalização neoliberal da universidade ao estabelecer um limite de 30% à participação do capital estrangeiro nas empresas de educação superior. Nenhuma reforma assentou em um diálogo tão profundo com a sociedade civil como essa, até a terceira versão, já pronta para tramitar no Congresso Nacional.
Um partido que gerou políticos da estatura de Tarso merece olhar o futuro com confiança. Mas tal só ocorrerá se o PT controlar a pulsão fraccionista de molde a fazer dela gérmen da diversidade na união, e não fator de fragmentação em lutas fratricidas pelo poder.
Há muitos anos, em Brasília, em conversa com o presidente Fernando Henrique, que respeito apesar das muitas divergências políticas que nos separam, eu tentava contrariar o slogan, então (e hoje?) muito atual, "a esquerda é burra", invocando a alta qualidade política de Tarso. O comentário de FHC, para o qual não pediu confidencialidade, espantou-me: "Desse eu teria medo, mas descanse, Boaventura, o PT nunca o indicará". Para o bem do futuro progressista da sociedade brasileira, desejo ardentemente que ele tenha se enganado.
Boaventura de Sousa Santos, 64, sociólogo, é professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal). Autor de, entre outros livros, "A Universidade no Séc. XXI: Para uma Reforma Democrática e Emancipatória da Universidade" (Editora Cortez, 2004)."
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